O artista fantoche

 

A sua desastrada e constante queda na minha estante de livros pareceu-me um bom motivo para um olhar atento. Olhei-o divertidamente como já não fazia há anos. Tinha sido uma oferta de um querido amigo, uma recordação de Londres. A minha realidade, distinta da que ele conhecia, levou-o a um destino de boneco decorativo. Encostado pacientemente tinha os seus fios entrelaçados numa teia de difícil penetração. Pernas e braços aprisionados, desgrenhado, despojado de movimento, mas sempre colorido e simpático. O seu enorme laço vermelho iluminava tudo o resto. Olhos desenhados com uma expressão de surpresa, parecia querer dizer algo, não fosse alguém ter-se esquecido de que a sua barba tudo escondia, mesmo agora quando ameaçava descolar do rosto de madeira com um grande nariz de Pinóquio. Peguei nele, tentei pô-lo no chão segurando na cruz de madeira que dominava por absoluto os seus movimentos. Observei no seu andar trôpego um sinal de descuido, de falta de atenção, de esquecimento. A paleta tinha as suas cores esbatidas, apagadas pelo tempo. No fundo dos seus braços flácidos uma das mãos segurava o pincel de madeira, fino, num prolongamento natural de um membro que aguardava pelo puxão, pelo empurrão. As suas calças e sapatos pretos contrastavam com a casaca colorida que tinha vestida sobre a camisa outrora branca e agora amarelecida pelo pó dos livros que tinha por companhia. Voltei a endireitá-lo na prateleira. Pensei novamente em como tinha estado esquecido por ali. Ordenei os seus fios, que ainda lhe tolhiam os movimentos, e não resisti a ensaiar uma desajeitada dança a dois no soalho da minha casa.
publicado por imprevistoseacasos às 16:43 | comentar | favorito