"Tinha cortado o cabelo loiro e estava mais magra. Tinha a certeza que não estava feliz. Não conseguia já distinguir as expressões nos rostos das pessoas. Mas os meus sentidos tinham-se tornado mais intensos, a outros níveis. Tinha aprendido a interpretar a voz do meu interlocutor, as nuances, as inflexões, mesmo os silêncios. Ora, naquele dia, ela tinha primado pelos longos silêncios, suspirava e mexia-se constantemente na cadeira da sala, onde almoçávamos calmamente. A mim bastava-me, por agora, sabê-la ali, e usufruir os nossos momentos, devagar, como quem abre uma prenda com toda a calma, prolongando mais uns segundos aquele singelo prazer. Abria este presente e temia ao mesmo tempo que ele se esfumasse, algures, na incerteza destes últimos tempos."